O presidente da câmara não presta
declarações
nem sobre a outra legislatura
nem sobre esta
diz que está empenhado
e quando perguntado
se não lhe chega o ordenado
diz que ordenado não foi
por se ter casado
antes de acabar o seminário
diz que o empenho não é desses
diz que está empenhado
mas é em mostrar serviço
para ganhar outras eleições
o salafrário.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
o presidente da câmara
o medo
O medo, o medo, o medo.
O medo é cão raivoso.
O medo morde. O medo é interior.
Se o medo cresce é pavor.
O medo é arma do poderoso.
O medo é individual.
O medo contamina.
O medo a paralisar...
O medo instala-se no tutano.
De não importa que idade
Sacudir o medo, que tal?
Limpá-lo, juntar
Fulano, sicrano e beltrano
Quantos mais
Menos o medo domina
Medo? Jamais!!!
O medo é fantasma
Só no escuro se dá bem
Para sacudir o medo
Traz outro amigo também
Pra fazer a claridade...
o papa-figos
— É ele! Não há dúvida, Ludovino. — e passa os binóculos ao companheiro — Além ao lado da azinheira, no Serro do Cuco.
— Ele quem, António?
— O Papa-Figos. Quem havia de ser?
Ludovino Colaço pega nos binóculos, tira os óculos, ajusta a ocular, e confirma: é o Salvador Bento, conhecido por toda a gente por Papa-Figos.
— Salvador, porque é que te chamam Papa-Figos?
— Sei lá, moço. É coisa em que pouco pego. Às vezes, de manhã com a fresca passo ao pé duma figueira e como um ou dois. No tempo deles, passa dias e dias que não toco num. A malta é maluca. Então e porque é que chamam Sapo ao moço do Joaquim da Portela, esse que está na guarda da caça? A malta é maluca, Gregório.
— O teu amigo António! Olha que ele marafa-se se te ouve chamar-lhe Sapo. Descuida-te com ele que ele manda-te prender, Salvador. — e o Gregório desmancha-se a rir.
— Eu quero que ele vá mas é ter um menino, Gregório. Olha, apanho ali um pimento e um tomate para a salada.
— Apanha, sim. Leva também uma cebola.
Companheiros da fábrica da cortiça, dos tempos de antes da tropa. Antes de o Salvador fazer a jura de nunca mais trabalhar, quando não o aceitaram para a polícia.
“Salvador Correia Bento, filho de Marcolino Bento e de Senhorinha Correia, nascido em 18 de Março de 1930, na freguesia de Vila Ruiva, concelho de Vila Ruiva. Reprovado.” dizia no papel afixado no posto.
— Não sirvo para a polícia, também não sirvo para trabalhar. Podem ter a certeza, moços.
A vida dele era andar pela ribeira, pelos barrancos, pela serra, a pescar e principalmente a apanhar passarinhos, que vendia às casas ricas, às tabernas e aos poucos restaurantes da vila. Actividade proibida que lhe valia de vez em quando uns tempos na cadeia, de que conhecia bem o carcereiro.
Conta-se que um juiz, em tempos, pediu passarinhos no restaurante do Afonso Mestre. Este disse, com ar pesaroso que não tinha. O juiz chama-o ao perto e diz-lhe ao ouvido:
— Eu sei. Dei-lhe três meses, não podia dar menos.
O Ludovino fica uns instantes calado. Não lhe está apetecendo nada meter-se à serra com este calor, atrás do Papa-Figos. Os quarenta e oito anos já lhe pesam nas pernas. O António está com vinte e sete, tem idade para ser seu filho, e olha para ele à espera de ordens. Bem te entendo, se não for, vais ficar com esta para me atirar à cara. Quando eu tinha a tua idade também dava um pontapé numa estrela. Cheguei a calcorrear léguas a subir e a descer serros atrás de outros Papa-Figos. Nas serras de Cachopo, essas serras não conheces tu, Sapo, como te chamam lá na tua aldeia, ou pensas que eu não sei?, essas serras são muito piores que aqui. Um homem anda mais ou menos pelos pontais, mas assim que desce um bocadinho, o terreno mergulha a pique direito aos barrancos, só consegue andar de lado, sempre de lado. Que é uma serra nova, disse-me um dia um engenheiro que encontrei por lá, dizia ele que estas serras são geradas pelos deslocamentos da terra, assim uma espécie de enrugamento. Lá, os serros ainda não arredondaram tanto com a erosão das águas, porque são mais novos que aqui, milhões de anos. Seja como for, aquilo lá era muito pior, a idade é que era outra.
— Vamos lá! — e meteram-se a caminho.
— Achas que ele já nos viu?
— António, um macaco daqueles deve ter-nos visto muito antes de nós o vermos a ele, era capaz de apostar.
— Ludovino, tu parece que tens simpatia por aquele pilho.
— Eu? Simpatia não tenho nenhuma, mas olha que ódio também não. A vida dá muitas voltas...
O Sapo olhou o companheiro de lado.
— Eu, para mim isto é uma missão, nem ao meu pai perdoo.
O Ludovino não disse nada.
António Martins dos Santos começou a aprender com o pai o ofício de carpinteiro aos doze anos, mas a habilidade nunca foi muita. Contrariamente ao irmão, de quem dava gosto ver sair as peças da mão, como por magia. António tinha uma inveja surda. Seria incapaz de confessar que detestava o ofício, e detestava-o mais ainda se o irmão estivesse por perto. Este bem lhe mostrava como devia fazer, mas as mãos não obedeciam. Quando regressou da tropa, em 59, um major de quem tinha sido impedido arranjou-lhe aquele emprego de guarda da caça. Se alguém sabia onde ele foi buscar o anexim de “Sapo” não o dizia, mas o certo é que o anexim lhe estava tão colado à pele que alguns na aldeia nem sabiam o seu nome. Mas também ninguém se atrevia a tratá-lo por “Sapo” na cara.
O Papa-Figos desapareceu da vista quando eles se aproximaram pelo vertente, a uns duzentos metros, menos. Mas era lesto o Papa-Figos, quando eles chegaram ao alto do serro do Cuco e pararam para descansar à sombra da azinheira, demoraram um bom bocado a avistá-lo já na chapada em frente, meio disfarçado atrás duma medronheira. O Ludovino estranhou ele ter ficado lá parado e meio a mostrar-se, mas não disse nada.
Quando Ludovino Colaço saiu da tropa já nada o prendia à terra natal, uma pequena vila alentejana. As irmãs já tinham saído, com os maridos, que foram ganhar a vida para longe. No breve período em que serviu a pátria num quartel da capital, o pai morreu atingido por uma pedra na pedreira em que trabalhava, o irmão morreu de tuberculose e a mãe de tristeza.
Ficou por Lisboa. Foi, primeiro, ajudante de pedreiros e depois empregado de mesa num restaurante de galegos. Foi lá que um coronel o desafiou para guarda da caça.
— Você, nota-se que é um homem do campo e que vive aqui em Lisboa contrariado. O seu lugar é no campo, homem. — e ria-se. — Eu reconheço isso à légua, sofro do mesmo mal. Quem me dera alguma vez pudesse resolver esse problema de voltar ao campo.
Depois de descansarem um pouco, lá partiram pelo vertente abaixo. Andaram à procura de sítio para atravessar o barranco sem deixarem a roupa e a pele agarradas às silvas. O que só conseguiram em parte.
Sobem a chapada na direcção de onde tinham visto o Papa-Figos junto à medronheira. Olham para trás e já ele está à sombra da azinheira no serro do Cuco. Ficam mesmo irritados, até o Ludovino já estava capaz de o estrafegar se o apanhasse ali.
Voltam para trás, atravessam o barranco, sobem a encosta. Vão direito à azinheira. O Papa-Figos desta vez está sentado numa pedra a gozar a sombra, e não mostra tenções de fugir.
Aproximam-se, ele levanta os olhos:
— O que é que vocês andam aqui a fazer, moços. Com um calor destes?
Só então percebem que não têm por onde lhe pegar.