um achigã com brinde

     Os olhos azuis, as bochechas rosadas, o cabelo loiro, em finos caracóis. É tal e qual, tal e qual. O pensamento do Frederico voa para longe, vinte e três anos lá atrás.
    Os olhos da Ivone seguem-lhe o olhar, quem será aquela lambisgóia?
    — Fred, estou a falar contigo. Onde tens a cabeça? Eu vou escolher o cabrito, e tu?
    — O que há?
    — Estás a ver? Não estás cá. Tens a lista na tua frente.
    — Eu vou... eu vou... no cozido. Com este ambiente acolhedor apetece-me cozido. Que é que queres beber? Mandamos vir uma garrafa de tinto de reserva? Hoje é um dia especial.
    Ele disse “um dia especial”? Que será que tem na manga?
    O Frederico não resiste a olhar de novo.
    Num impulso maquinal os olhos da Ivone visam a mesma direcção. O quê? A lambisgóia já lá não está?! Então para onde é que ele olha? Só pode ser para esta que está com a família. Sim, senhor! Bonito serviço, uma mulher casada, um marido por sinal com muito bom aspecto, uma filha tão linda; resumindo: uma família perfeita. Deve ter sido alguma namorada. Mas ela é muito discreta, nem dá sinal de nada. São as piores.
    É que é mesmo tal e qual. O pensamento do Frederico não se consegue descolar daquela madrugada de Outubro de 73; involuntariamente desliza até às profundezas dos dias, semanas, que se lhe seguiram.
    — Fred! Acorda!
    E o que o Frederico ouve é “Pim!”
    Alguns minutos depois: “Pim!”
    Com uma regularidade de relógio: “Pim!”
    Tentou contar os segundos entre os “pins”. Contou seiscentos e trinta e sete de uma vez. De outra contou seiscentos e quarenta e nove, de outra contou seiscentos e trinta. O barulho da pequena gota de água no fundo do lavatório atinge proporções gigantescas que parece quererem rebentar-lhe as meninges. Nunca soube se a torneira foi deixada assim de propósito. Talvez não, em qualquer caso o melhor era não dizer nada para não dar ideias aos esbirros.
    Dantes a PIDE batia a torto e a direito; arrancavam dentes, arrancavam unhas, torciam testículos, apagavam cigarros na pele…  Depois foram aprendendo que à dor física é mais fácil resistir. A tortura do sono agora é rainha; ao fim de alguns dias começas a delirar, vês monstros, vês aranhas, chegas a senti-las. Mas este “Pim!” do pingo da torneira mal vedada consegue ultrapassar tudo o que se possa imaginar.
    — Fred! Estou a falar contigo! — outra vez o “Pim!”, não sabe quantos segundos se passaram, não contou.
    Até o sorriso é igual, e o “Olá!” quando passaram ao seu lado dirigindo-se à saída. Aquele sorriso e aquele “Olá!” daquela manhã em que a PIDE o levava pelas escadas do prédio suburbano ficou-lhe gravado para sempre, e serviu-lhe tantas vezes de âncora nos momentos mais difíceis. Sempre que a dúvida se tentava matreiramente instalar, sempre que tentava assomar a pergunta: ‘Valerá a pena?’, aquele sorriso, aquele “Olá!” estavam presentes a garantir que vale a pena. Que há de mais precioso que as crianças?
    Quando tocaram à campainha teve um sobressalto; pegou na Browning, e a primeira espreitadela foi pela janela; não se enganava, estava cercado. Lembrou-se do que o “Velho” dizia sempre na sua voz branda e pausada enquanto cofiava o bigode:
    — Nunca se esqueçam de usar a cabeça. Resistir só quando há hipóteses. Uma prisão é só mais uma, uma vida só temos esta e faz muita falta à causa. Aqui estou eu com os meus cinquenta e um e já nem me lembro quantas vezes fui dentro.
    Voltou a colocar a Browning debaixo da almofada e foi abrir a porta. Ainda lhe veio à ideia gritar para a vizinhança que o estavam levando, mas as ordens eram só apelar à massa na rua ou em aglomerações, de preferência de operários. Nesses casos poderia até acontecer que tivesse sorte e eles conseguissem dominar a PIDE. Chegou a acontecer, mas de há muitos anos para cá eles já não se deixam cair em situações dessas. Fazê-lo num prédio de habitação só poderia servir para criar problemas aos moradores. Seguiu calado. Foi quando a menina, levada pela mão da mãe, sorriu para ele e disse:
    — Olá! — enquanto a mãe a puxava e mandava calar.
    Ao olhar da Ivone, sempre atento a todos os movimentos dos olhos do Frederico, não escapou que o motivo do interesse dos olhos dele afinal era a criança. Por esta é que eu não esperava. O caso é mais grave do que eu pensava.
    — Fred???!!! — e o “Pim!” quase lhe dilacerou o cérebro.
    Olhou para a Ivone e pareceu-lhe ver a cara do pide José Silveiro, louro, sardento, cínico até ao tutano, por má sorte também algarvio. Estás a ver? E apontava com o queixo o retrato do Che colado na parede do seu gabinete, esse era um herói. Tem uma grande qualidade: está morto!, e ria com o seu riso de hiena. Pensas que nós não sabemos que isto não dura muito? Sabemos melhor do que tu, mas enquanto dura somos nós que mandamos. E mudava de repente do riso de hiena para um ataque de furiosa raiva e recomeçava aos murros e pontapés.
    Mas ele sabia que a porrada só servia para espicaçar a resistência dos presos. Mandava levarem-no e ficava sozinho, em crise de desespero. Mais um triunfo. Gostava que o “Velho” visse a cara de derrotado do Silveiro.
    — Fred! Quero uma explicação! — “Pim!”
    — Vou à casa de banho.
    — Não te esqueças que quero uma explicação. — “Pim!”
    — Não! Fica descansada que não me vou esquecer nunca.
    Uma vez no corredor, chamou o empregado, deixou-lhe uma nota que daria para pagar três almoços e saiu para a rua. Pegou no carro e saiu direito ao rio. Estacionou e dirigiu-se à ponte medieval.
    Em cima do passeio, apoiado na guarda, tirou do bolso o embrulho, que desfez, e abriu a caixinha; olhou por um bom bocado o anel de noivado que tinha comprado para oferecer à namorada no fim do almoço. Viviam juntos havia ano e meio. Estava, tinha estado, apaixonado por ela até esta tarde, até ao momento em que os seus olhares e interrogatórios de controlo contínuos se misturaram com o “Pim!” do pingo de água da torneira mal vedada e a sua cara com a do Silveiro. Estendeu a mão e deixou cair o anel na água límpida do rio. À medida que o anel percorria os escassos metros que o separavam da água invadiu-o uma leveza só comparável à que tinha sentido no dia 26 de Abril de 74, ao transpor os portões do forte de Caxias.
    Mas o que é aquilo?! Um achigã enorme abocanhou o anel antes que este chegasse ao fundo. Não tinha contado com esta. Pensou que o anel iria ficar no fundo entre os limos até que a corrente no inverno o levasse para o mar.
    Chegou um pescador, maltrapilho, não o conhecia, mas devia ser pessoa que pescava para equilibrar a vida, a avaliar pela aparência.
    — Boa tarde, amigo! — dirigiu-se ao pescador — Vai pescar aqui ao achigã?
    — Boa tarde! Venho com essa intenção. Há problema?
    — Nenhum, amigo. Mas se me permite dou-lhe um conselho, se apanhar um assim grande — e assinalava com o dedo da mão esquerda sobre o pulso direito e de mão esticada, — não o venda nem dê a ninguém, leve-o para casa e prepare-o com cuidado. —  e foi-se embora piscando o olho.
    Mais à frente ainda se voltou para trás:
    — Não se esqueça, não o venda nem o dê.
    O pescador ficou por um bom bocado a vê-lo afastar-se. Isto é que aparece cada maluco!