Tinha logo de me calhar a mim! A mim, que nunca tive ambições desmedidas. Nunca fui como aquelas pessoas que vivem dependuradas da esperança de que lhes saia o euromilhões. De vez em quando jogo, mas sempre com um intuito na ideia; vocês podem não acreditar, mas se um dia me sair ajudo muita gente. Já pensei em matar uma ou duas vacas, mais uns quantos porcos, leitões, perus, comprar muito peixe fresco, para quem preferir, e fazer um churrasco gigantesco na minha aldeia. Convido toda a gente, os que gostam de mim e os que não gostam, e no fim dou um envelope bem recheado a cada um, todos por igual, assim sem avisar. Dizem que quem dá de mão beijada não ajuda, mas quem sou eu para fazer o julgamento antecipado de como irá cada um gastar o dinheiro?
Confesso que já algumas vezes me passou pela cabeça comprar antes uma arma a cada um dos desempregados todos que puder e eles que façam o que quiserem com ela. Mas isso é quando estou zangado, passa-me depressa. Não acredito na força do ódio. O ódio é breve, o amor é eterno. Conheci alguns que se tornaram revolucionários por ódio, já não resta nenhum. Por outro lado, os que conheço e se tornaram revolucionários por amor restam todos; mesmo que alguns de vez em quando pareça que se vão abaixo, acabam sempre por ultrapassar a fase baixa. Algumas vezes digo que tenho medo de que me saia o euromilhões, porque não vou saber como gerir o dinheiro; e pior ainda, porque daí para a frente já não irei arranjar amigos, todos os que se aproximem pode ser por interesse. A minha família, os meus amigos, os camaradas da oficina são unânimes:
— Tu és mas é parvo, Alberto. Ele que me saia a mim a ver se eu não o sei gastar. Ai não, que não sei! — é o que dizem.
Acho que não deixava o trabalho. A minha vida sempre foi trabalhar, acho que não saberia como passar o tempo. Há dias em que dou o trabalho ao diabo e sou capaz de jurar que se um dia me saísse o prémio nunca mais punha os pés no trabalho. Mas no dia seguinte já me esqueci do que pensei.
A minha Idalina tinha ido passar uns dias à da mãe, que estava adoentada, coisas da idade avançada, já são setenta e dois. Quando vi a chave na televisão conferi três vezes. Não queria acreditar. Ainda fui confirmar os números à internet. Não fiquei aos gritos nem aos saltos como se poderia esperar. Sentia-me a pairar nas nuvens. Confesso que tive medo de que me desse alguma coisinha ruim com a emoção contida e eu ali sozinho. Eu pareço muito expansivo, mas quando a emoção é forte fecha-me. Também sou assim quando morre alguém querido, não consigo extravasar. Não costumo beber sozinho, mas fui abrir uma garrafa de uísque que tenho em casa há mais de vinte anos. Não foi tanto para festejar, foi mais para acalmar, tenho ouvido dizer que é muito bom para o coração. É verdade que caiu cá dentro e levantou-se um calor reconfortante como nunca tinha sentido.
Tive o sangue frio suficiente para não correr a telefonar a toda a gente. Nem à Idalina, porque tive medo de que ela não se contivesse e começasse a espalhar a notícia, pelos pais, pelos filhos, pelas amigas. Tive medo até de que se a notícia se espalhasse alguém me pudesse vir assaltar. Tinha medo até de falar ao telefone no assunto, quem sabe se os telefones não têm escutas? Tinha de esperar até segunda-feira e rumar a Lisboa. Acho que há um número de telefone para nos aconselhar nestes casos, mas na altura nem me lembrei de tal possibilidade. Teria de arranjar uma desculpa para ir a Lisboa sem ninguém desconfiar.
Não preguei olho toda a noite. A cogitar em como iria proteger o dinheiro, congeminei que o melhor seria distribuí-lo por muitas contas em vários bancos diferentes, com isto de nunca se saber qual vai falir a seguir. Valeria a pena trocar por outras moedas? Mas como? Teria de me informar sem dar nas vistas. Tinha ouvido dizer que a maneira mais rentável de investir nestes tempos era comprar dívida pública, porque era a que dava melhores juros e com mais garantias. Até há quem diga que é por isso que há dívida pública, porque é o negócio do momento. Teria de me informar como isso se faz. Às seis e trinta e sete, já a aurora tentava romper, decidi que não me podia fiar em ninguém que viesse com conselhos de como investir.
Convenci a minha mulher de que tinha que ir a Lisboa fazer um acção de formação da oficina. Convenci o patrão de que tinha que ir a Lisboa com a minha sogra a uma consulta. Tinha consciência de que podia ser descoberto, mas não era muito provável, e não me ocorreram desculpas melhores. A cabeça já latejava de ter que tomar tantas decisões em tão pouco tempo.
Decidi ir de comboio. Não estava habituado a conduzir em Lisboa, e achei que com as noites quase sem dormir era mais seguro. Procurei na internet a morada da Santa Casa e algum sítio ali perto que daria como endereço ao taxista para este não desconfiar quando lhe dissesse que queria ir para a Santa Casa. Todo o cuidado é pouco para defender o que é nosso.
Uma vez lá na Santa Casa tudo se revelou mais fácil do que tinha cismado. Havia lá uma equipa de algumas cinco pessoas muito simpáticas e que se apresentaram como estando exclusivamente ao meu serviço para o que fosse necessário. Não entendi muito bem o que eram, acho que uma era psicóloga e um era economista. Todos me inspiraram confiança, reforçada por ter encontrado lá a trabalhar um rapaz que conhecia por ser filho de um casal que tem uma casa ali metida à serra a caminho do Mioto e vêm muitas vezes beber o café e conversar com o pessoal da terra à venda da minha cunhada Lurdes, quando vêm de férias no verão ou mesmo por outras alturas. É gente muito simpática e popular; não sabia que o filho trabalhava na Santa Casa, foi uma surpresa agradável. Tenho alguma convivência com eles e conheço bem o caminho e a casa porque fui algumas vezes por causa dos carros.
Resolvi que iria distribuir o dinheiro entre as quatro famílias, nós e os três filhos. Que cada um resolva como tratar dele. Nunca mais pensei no churrasco nem nos envelopes, afinal dividido pela família toda não era assim tanto dinheiro: só vinte e sete milhões.
Vinha já a atravessar a serra antes de começar a descer para o Mioto quando vi o carro parado e uma senhora a labutar às escuras com a roda e o macaco. Esqueci-me de dizer que tinha comprado um todo‑o‑terreno mesmo antes de a família saber da sorte que nos tinha tocado. Sempre desejei ter um todo‑o‑terreno, e entendi que merecia este prémio. Estava uma noite de chuva cerrada na serra e nem hesitei em parar para ajudar.
Só me lembro de ter acordado com o todo‑o‑terreno a circular acelerado pelas curvas da serra. Eu ia no banco de trás, com os olhos vendados e as mãos amarradas uma à outra. Tentei mexer-me e fui agarrado por braços fortes de ambos os lados. Todos em silêncio. Andámos muito tempo a circular pela serra, mais de uma hora, muito mais. Pela estrada alcatroada e por caminhos de terra.
Eu conheço a serra como as minhas mãos e a dada altura consegui localizar por onde íamos e notar que passámos várias vezes pelos mesmos sítios. Não disse nada, achei mais prudente. Quando íamos no caminho direito à casa do tal casal de que falei lá atrás fez-se-me luz. O motivo do rapto revelou-se-me claro. Como tinha podido ser tão ingénuo? Só me apetecia esbofetear-me. Mantive-me calado, achei mais seguro. Agora já sabia o motivo. O que iriam fazer? Iriam pedir resgate? Mas a quem, se a minha família nem ainda sabia de nada?
Foi quando percebi que o carro ia demasiado depressa para passar a valeta que eu sabia existir a menos de vinte metros. O cuidado com a minha pélvis, que fracturei há uns anos num acidente de mota, soou mais alto que o medo, e gritei em desespero:
— Cuidado com a valeta!
— E agora o que fazemos? — perguntou o do lugar do pendura com a voz a tremer, momentos depois de saltarmos com violência na valeta.
Começaram a discutir o que fazer comigo como se eu ali não estivesse. Agora que eu sabia onde estava, porque aquele caminho não ia para mais parte nenhuma; e que eles sabiam que eu sabia; e que eles já falavam abertamente sem disfarçar as vozes: presumi que tinha fortes razões para ter medo, muito medo.
Só vi o clarão, mesmo através da venda, seguido pelo enorme estrondo.
— Quando é que vão acabar com isto? Malditos festejos bárbaros! — gritei eu todo a tremer quando percebi que o estrondo do morteiro a inaugurar a festa dos Santos me tinha acordado.
Devo ter gritado bem alto porque a minha Idalina, que já estava na cozinha a fritar as fatias de ovos na enxúndia de galinha, e nem reparou no morteiro, veio ao quarto a correr ver o que se passava.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
cuidado com a valeta
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