Sinto-me mal, até tenho medo de que me possa dar alguma coisa má. Agora dava muito jeito que a minha mulher conduzisse, passava-lhe já o volante para as mãos. Mas ela nunca mais conduziu desde que tirou a carta, já lá vão, já lá vão uns quinze anos?
— Dezassete, Aurélio!
— Dezassete?! Como o tempo passa!
E com este escuro então nem pensar.
Há cinco anos que não punha os pés na casa do meu irmão. Nem estava com vontade nenhuma de lá ir, já sei que a conversa acaba sempre por descambar. Mas podia lá faltar ao baptizado! Afinal é meu irmão, e só tenho aquele. E é o seu primeiro neto.
Mas porque é que ele tem sempre de me fazer irritar? Não basta os azares da vida senão ele ainda me vem tornar as culpas.
Há mais de quinze anos que cá estou; pois claro, a Isaura já tirou cá a carta e ela diz que há dezassete que a tirou. E nunca a água tinha chegado sequer à rua do armazém.
Agora, vem de lá em mazarulho, arromba a porta de cima, abre o portão de baixo, e leva-me mais de duzentos contos em adubo e farinhas de ração. Para alimentar os peixinhos do mar e adubar as terras dos outros à borla? E vá lá que nessa noite tinha deixado a carrinha cá em cima na rua do café, só porque tinha ido levar uns sacos de farinha ao Inácio Matias e quando voltei já não tive vontade de ir guardá-la lá em baixo.
Uma pessoa queixa-se e o apoio que recebe do seu próprio sangue é:
— Quem te mandou fazer o armazém dentro da ribeira?
E ainda continua a remexer na ferida:
— Porque é que não tens as coisas no seguro?
Como se ele não soubesse que não posso fazer seguro porque estes ladrões não me dão a licença para o comércio do adubo e das farinhas. O armazém está como construção agrícola, senão como é que eu o ia conseguir legalizar? E onde é que eu ia guardar a mercadoria?
Mas quando ele me tirou mesmo do sério foi quando foi comparar a cheia com o que se passou lá com a África. O que é que uma coisa tem a ver com a outra?!
— Ó Aurélio, com essa de achares que a ribeira nunca havia de encher só porque nunca a tinhas visto cheia, fazes-me lembrar quando vocês tiveram que vir a toque de caixa lá da África. Só porque nunca tinham vindo não queria dizer que mais tarde ou mais cedo não tivessem que vir.
O meu irmão devia ter mais respeito. Sabe lá ele o que custa sermos roubados, depenados de tudo o que se acareou, tantas vezes com suor e lágrimas.
Foram tempos muito difíceis. Depenadinhos, completamente depenadinhos. Sabe lá o meu irmão o que isso é.
E mal recebidos cá. Ainda me lembro bem da maneira como todos nos olhavam quando viam passar o Anglia com o ZO na placa de matrícula. E a maneira como a minha mulher foi mal recebida na secretaria da escola. Falavam entre elas e quando ela entrava calavam-se. Foi muito duro para ela. Tratavam-nos como se fôssemos bichos raros. Não nos diziam na cara: “Vai-te embora retornado!”, mas sentíamos que era isso que pensavam.
— Deixa-te dessas lamúrias. — disse-me ele uma vez. — Este país foi capaz de recebê-los cá todos. Um país tão pequenino e cheio de dificuldades, mas couberam cá todos, não couberam?
Calei-me. De que adianta discutir com gente ignorante, gente que nunca daqui saiu, gente que não alargou horizontes, gente que vive aqui acomodada. Em nome dos laços de sangue, é o meu único irmão, calei-me. Mas se não tivesse sido o senhor Matos a fazer força lá em cima, nem a minha mulher tinha sido promovida a chefe da secretaria, nem eu tinha conseguido aquele lugar de chofer que tanto jeito me deu para a reforma. O senhor Matos estava sempre disposto a dar uma mãozinha. Ele dizia sempre: “Temos que ser uns para os outros!” Uma jóia de pessoa. Já lá está, mas não é por isso que digo isto. Nem por sermos compadres. É verdade que também o ajudámos muito naquela altura difícil.
— Compadre Aurélio, isto está muito difícil para mim. A mim têm-me debaixo de olho, mas a vocês ninguém vai revistar as bagagens. Preciso que me levem umas encomendas disfarçadas no meio das roupas. São três saquinhos pequenos, ponham um em cada mala, depois lá na metrópole logo mos dão.
Mais tarde vim a saber que eram umas pedrinhas muito valiosas, nem me atrevo a dizer o nome. Fosse como fosse, ele nunca nos falhou, alguma coisa corria mal, ia ali ao telefone e ele dava sempre um jeito lá em cima.
Quando comprei aqui o café e o terreno, pensei cá para mim que o negócio do adubo e das farinhas também devia dar. Tentei legalizar tudo, mas aí já ele tinha perdido alguma influência. Mesmo assim, em boa parte estou convencido que era por ele que fechavam os olhos.
O senhor Matos foi a pessoa com mais olho que já vi em toda a minha vida. Ele era polícia lá em Angola, não era dos que andavam fardados.
— Era da polícia internacional, Aurélio.
— Então, e eu não sei, mulher?
Ele sabia que já havia alguma tramóia, por isso é que se preveniu com as pedras.
Um dia, estávamos num churrasco, no jardim dele, e disse-me:
— Compadre Aurélio, isto não dura muito, temos que nos preparar. Isto é como as forças da natureza. — nunca mais me esqueci. O homem era um poço de sabedoria.
tudo o que aqui publico é de minha autoria e nada do que aqui lemos aconteceu; mas tudo poderia ter acontecido, nem que fosse nos sonhos dos personagens
forças da natureza
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