tens que o deixar andar à solta

     Quase todos os dias se cruzavam pelo jardim, deserto àquela hora matutina. Sozinho um, passeando o rafeiro o outro.
    O miúdo segurava o rafeiro com uma corda. Este nunca desistia de tentar cumprimentar o velhote sempre que se cruzavam; talvez o fizesse com toda a gente; abanava o rabinho e estrebuchava, sempre irrequieto. Como todos os cachorros farejava incansável todos os recantos qual criança explorando o mundo.
    O velhote, se tivesse condições, ia ao canil buscar um cão. Tinha um gato, ainda dos tempos da mulher; já velhote e rameloso, mesmo assim independente. Um cão é diferente; acompanha-nos a passear, obedece, dá ousio, como fazia o “Pombinho” lá na terra. Há tantos anos, tantos. Foi uma ovelha que o matou; ele encontrou uma cadela no cio, a ovelha não simpatizou com a relação, marrou em ambos separando-os à força. O “Pombinho” veio a morrer uns dias depois. Se fosse hoje tinham-no levado ao veterinário.
    Não! Não andaria com o cão pela trela, não o prenderia. Afinal o cão é inteligente para aprender a andar em qualquer rua, para evitar os carros, até para atravessar na passadeira melhor que muitos humanos.
    — Tens que o deixar andar à solta. — atreveu-se um dia a sugerir ao miúdo. Este acelerou o passo.

    O miúdo fazia-lhe lembrar o seu Luís, sem serem sequer parecidos. Há tantos anos, foi ainda antes de ser chamado para a fábrica. Tinham feito o canal de rega havia tão pouco tempo. E qual era o melhor caminho para a escola senão a banqueta do canal? Digam-me! Digam-me se souberem. Um dia escorregou, ou distraiu-se, sabe-se lá, com algum passarinho, alguma lagartixa.
    — Ó, Belmira, não achas que devíamos arranjar outro gaiato?
    Ela fechava-se. A seguir evitava-o.
    Nunca tirou a limpo, mas acabou convencido de que ela se recriminava pelo sucedido. Mas como poderia evitar, meu Deus? Como? Com o tempo deixou de insistir.

    A mãe do miúdo morreu tinha ele sete meses. O pai nunca se soube quem era. Criado com a madrinha a quem chamava mãe.
    — Renato, toma cuidado com estranhos. Nunca aceites nada de ninguém. Toma mais cuidado ainda com quem queira meter conversa. Há gente muito má!

    O velhote nunca se habituou a ver os cães presos, não conseguia entender. Gostava muito do dito: “o sol é que nos faz”. Entendia ele que a vida se faz enfrentando as dificuldades. Talvez, sem o saber, sentisse que o que faltou ao Luís foi calo da vida para não se deixar apanhar pelo canal. O miúdo tão calado, tão pouco sociável, aprisionando o seu rafeiro querido, não o deixando viver e aprender, desgostava-o. Sem dar por isso tinha ganhado afecto àquele desconhecido e ao seu rafeiro. Muitas vezes tentou a aproximação sem sucesso.

    — Ó mãe, há um velho no jardim que mete muitas vezes conversa comigo.
    No dia seguinte a madrinha vigiou de longe e confirmou.
    Quando o velhote entrou na padaria, calou-se tudo. Mais à frente teve a impressão de que tinham ficado a falar nas suas costas. Mas o pior foi quando a mulher do alfaiate à sua passagem cuspiu no chão e disse baixo, mas de maneira audível:
    — Porco! Velho porco!
    O velhote caiu em si.

    Nessa noite não dormiu. Chorou por todas as muitas décadas sem chorar. Chorou pelo Luís, pela sua Belmira, chorou pela mãe, chorou pelo pai, chorou pela avó, chorou pelo miúdo, chorou pelo rafeiro, chorou por si próprio.
    Antes das cinco pôs água e comida ao gato deixou a porta encostada e caminhou devagar para o jardim. Laçou a corda numa pernada da árvore por cima dum banco... Preso com uma pedra sobre o banco deixou à laia de despedida: “Tens que o deixar andar à solta”.